sábado, 29 de junho de 2013

O pastor vai às ruas . . .

Com exceção à Marcha Para Jesus, ele nunca havia frequentado uma manifestação. Não é ligado aos movimentos sociais organizados, não tem filiação partidária e torce o nariz para a ideologia do Movimento Passe Livre (MPL). Peterson Alves de Silva, 32 anos, tem perfil improvável para um agitador de protestos: é pastor em uma igreja evangélica, trabalha como analista de sistemas, nasceu e mora no Capão Redondo, bairro pobre na periferia de São Paulo.
Nas últimas semanas, ele liderou duas das maiores manifestações na periferia paulistana. A primeira reuniu 6 mil pessoas na sexta dia 21. Para a segunda, na quarta dia 26, havia 7 mil confirmações no Facebook, mas pouco mais de 300 jovens compareceram. Número significativo quando se considera que se tratava de uma noite chuvosa e que não houve mobilização de movimentos organizados.
Os participantes eram, em sua maioria, alunos de escolas públicas convidados pelos amigos do bairro. Peterson foi chamado por eles para entrar na organização quatro dias antes do primeiro ato, quando já havia quase 3 mil confirmados. Os jovens estavam determinados a fazer parte da onda que assistiam pela TV, mas queriam uma cara “séria” na organização. Um deles conhecia Peterson das oficinas culturais que ele realiza na igreja e nos CEUs, os Centros Educacionais Unificados. No vácuo de outras lideranças que atuam na região, mas não se engajaram no ato, Peterson assumiu o megafone da turma. “Eu não tinha experiência, mas aceitei ser empurrado para esse papel”.
Cuidadoso e carismático, ele tem um estilo bem diferente da maior parte dos líderes de protestos de rua que pipocam pelo Brasil. Escolhe palavras propositivas, não ataca partidos nem critica a burguesia. Peterson tenta adaptar, à mobilização de rua, a retórica adquirida na experiência como pastor.
No início da caminhada do segundo ato, antes de puxar o hino nacional, ele pediu que os meninos e meninas segurassem as mãos da pessoa ao lado e as levantassem para o alto. Os manifestantes cantaram o hino como quem faz uma oração. A cada quilômetro de caminhada, Peterson fazia uma “parada para reflexão”, quando falava sobre a importância dos jovens e do bairro. Em uma delas, pediu para o grupo sentar e repetir frases como: “nós temos história”, “nós vamos mudar o país”. Embora houvesse uma beleza no coro de vozes adolescentes entoando promessas de emancipação, o efeito era prejudicado pela hierarquia do grupo, que nesse momento lembrava a de uma sala de aula.
A idade média dos manifestantes variava entre 13 e 19 anos. Eles alternavam gritos de guerra a ataques de riso efusivos enquanto caminhavam pelas duas faixas da Estrada de Itapecerica, a principal via de ligação com a ponte que os separa da região central. “Eu passo horas nesse trânsito todo dia, nem acredito que tomamos a estrada. É uma sensação boa demais!”, disse uma menina de 14 anos, sorriso eufórico no rosto ao andar entre as fileiras de carros e ônibus parados.
As principais demandas dos adolescentes eram sobre educação, “respeito” e “união”. Quando indagados sobre quais eram os problemas que vivem no cotidiano, a reclamação era a escola. “A educação é um lixo” e “os professores faltam muito” foram as respostas campeãs de audiência.
A maior parte dos manifestantes aderia aos comandos de Peterson, mas havia exceções. Na frente do hospital público do Campo Limpo, ele pediu um minuto de silêncio e reflexão sobre “as pessoas que estão morrendo lá dentro”. Muitos ficaram introspectivos, alguns até se emocionaram. Outros não resistiram à vontade de continuar o papo.
Havia ainda um grupo de seis adolescentes que se apresentava como punks “contra o governo, a pátria e a péssima qualidade das escolas”. Esses discordavam de quase tudo que Peterson dizia. Ficavam especialmente irritados quando ele puxava o hino ou o grito que tem marcado as manifestações pelo Brasil: “eu sou brasileiro, com muito orgulho, com muito amor”. Carregavam uma faixa onde se lia “antifascista” e um cartaz escrito “a sua pátria não me representa”. Peterson temia que os grupos entrassem em choque. Mas, conversando, os jovens se entenderam ao longo do caminho e não houve problemas.
A excitação entre os manifestantes era intensa. Eles falavam alto e andavam em passos acelerados. De vez em quando Peterson tentava diminuir o ritmo, gritava ao megafone: “Segura aí pessoal!”. Sem sucesso, a juventude não sabe andar devagar.
Fazendo um paralelo com seus estudos religiosos, Peterson tenta entender a motivação dos jovens que saem às ruas do Capão e do país. Para ele, “entusiasmo” é a palavra que melhor traduz o atual estado de espírito das ruas. “É uma palavra que define o estado de pessoas que são motivadas por algo maior, uma causa profunda e eterna. Quando você desperta uma situação como essa que está acontecendo no país e ela se dissemina entre jovens entusiasmados, isso pode tomar proporção que não se prevê”.
Ele lembra da origem da palavra que, nas religiões da Antiguidade, significava um estado de exaltação de quem recebe uma inspiração divina. Mas não atribui caráter religioso aos protestos. “Eu seria arrogante em dizer que sei o que está acontecendo. Esse entendimento só a história vai nos dar”.
Peterson é aberto a novas ideias, considera-se um evangélico precoce para o seu tempo. No vídeo em que chamava as pessoas ao segundo ato, por exemplo, ele convida todos os grupos religiosos do bairro, inclusive católicos e umbandistas (as duas religiões são ligadas a entidades sociais importantes na região). Ele sabe que pode sofrer represálias por isso, mas não se arrepende. Ele pede para não identificar o nome de sua igreja nessa reportagem, pois seu engajamento nos protestos são uma iniciativa individual, não tem o apoio oficial da instituição.
Enquanto os jovens marchavam no Capão, um ato com número similar de pessoas ocupava a Avenida Paulista para protestar contra o deputado e pastor Marcos Feliciano, que propôs a votação de projeto de lei sobre tratamento psicológico para homossexuais. Pisando em ovos, Peterson se declara contrário à interferência da religião no estado. “Acho que essa é uma questão médica, a sociedade da categoria tem autonomia para decidir se deve haver tratamento ou não. Lamento que alguns queiram impor a doutrina fora da Igreja”.
Mas, afinal, qual seria sua opinião sobre uma das maiores polêmicas que divide a comunidade evangélica da sociedade moderna? Considera a homossexualidade como uma doença? Ele responde com cuidado: “Não tenho condições técnicas, do ponto de vista médico, para responder. E não posso falar do ponto de vista espiritual, pois não foi um tema em que aprofundei meus estudos como pastor. Mas acredito que o evangelho está sendo escrito no presente e não sabemos o que virá. Quem sabe um dia teremos um novo concílio? Quem sabe surjam novos evangelhos mais abertos e ricos sobre as maneiras de se relacionar com Deus e com os outros?”.
Peterson acredita que o país pode estar passando por uma profunda transformação em todas as esferas: política, social e espiritual. “Para mim, olhando a periferia, a mudança mais importante é no povo. As pessoas podem despertar sua visão para a política: do que é participar, criar grupos e fóruns para discutir os rumos do país”.
Apesar do foco na “mudança de consciência”, ele também negocia questões locais específicas. No dia do protesto, levou uma lista de demandas à subprefeitura. A estratégia, agora, é colher um abaixo-assinado para pedir união entre o governo estadual e o federal para construir a extensão do metrô do Capão até o Jardim Ângela – uma promessa antiga que nunca saiu do papel. Em breve, Peterson pretende bater na porta dos senadores paulistas em Brasília com o pedido. E já chamou outra manifestação para o dia 12 de julho.
Uma das dificuldades que o grupo enfrenta é a ausência de repercussão na mídia. Em dias diferentes, o Capão também foi palco de protestos organizados pelo MPL, Movimento dos Trabalhadores Sem Teto e grupo Periferia Ativa. Esses atos contaram com a cobertura da TV Globo, SBT, Bandeirantes, jornais e emissoras de rádio. Até o jornal britânico Financial Times cobriu o protesto. O ato pressionou o governador Geraldo Alckmin a atender duas demandas: redução da tarifa intermunicipal e aumento do bolsa aluguel. Já os protestos liderados por Peterson, embora reúnam quantidade similar ou superior de pessoas, não contaram com a presença de emissoras de TV, rádio ou jornal.
Enquanto descobre a vida de militante, Peterson alterna a nova rotina com o trabalho para sua carreira e para a Igreja. Nesse sábado, deve correr de uma reunião na subprefeitura direto para a Marcha para Jesus. Ele não recebe remuneração como pastor, seu sustento vem da prestação serviços como analista de sistemas autônomo.
No dia que lhe conheci, andamos do seu trabalho até a estação de trem. Depois de contar sobre a reunião que faria naquela mesma noite com os jovens do Capão, ele encolheu os braços e mergulhou no vagão lotado. Tão cheio que as janelas estavam embaçadas. A porta não fechou porque a ponta do seu sapato estava no trilho. Como não era possível dar um passo para trás, Peterson mudou o ângulo do pé, liberando a porta. E assim o líder partiu: corpo espremido pelos problemas do presente, cabeça fervilhando com as mudanças que aspira para o futuro.

Nenhum comentário:

Postar um comentário